De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, divulgados em março de 2011, o INSS é o maior litigante nacional correspondendo a 22,3% das demandas dos cem maiores litigantes nacionais que, por sua vez, representam 20% dos processos no país.
Há inúmeros fatores determinantes para que a autarquia ostente este posto, mas para não dissociarmos do objeto deste artigo, referenciamos a discrepância dos entendimentos firmados na via judicial com a postura adotada na via administrativa. É certo que se os órgãos julgadores do Conselho de Recursos da Previdência Social e também o próprio INSS, observassem entendimentos sedimentados pelo STF e STJ, no julgamento dos recursos repetitivos, controvérsias que são levadas para a resolução pelo Poder Judiciário seriam resolvidas na via administrativa.
Diante desse cenário, recentemente, no dia 20 de agosto de 2019, reuniram-se lideranças do Poder Judiciário, da Advocacia Geral da União, da Defensoria Pública da União, do INSS, além de representantes da Secretária Especial de Previdência e Trabalho, para discutir medidas para reduzir o número de disputas sobre direitos previdenciários na Justiça.
Na ocasião, houve o lançamento da iniciativa denominada “Estratégia Nacional Integrada para Desjudicialização da Previdência Social”, e o então presidente do INSS se comprometeu a abandoar posturas administrativas que perpetuam a litigiosidade das causas previdenciárias, afirmando que “Há, sim, interesse do INSS em internalizar administrativamente entendimentos da Justiça. Em última instância, queremos parar de brigar desnecessariamente com o cidadão e dar efetividade ao processo de concessão dos benefícios”.
Ainda na cerimônia, foi assinado documento estabelecendo diretrizes da Estratégia Nacional Integrada para Desjudicialização da Previdência Social que, dentre outros compromissos firmados para consecução dos objetivos da Estratégia, foi estabelecido o objetivo de “III – incrementar e apoiar medidas tendentes a assegurar maior efetividade ao reconhecimento dos direitos, em especial a concessão e revisão de benefícios previdenciários e assistenciais quando já pacificados em precedentes qualificados;”.
Assim, há a intenção do Poder Público de “internalizar administrativamente entendimentos da Justiça”, contudo, até o presente momento a iniciativa não foi tirada do papel. Neste artigo defenderemos que, a míngua de regulamentação interna do INSS sobre a matéria, é possível a aplicação de precedentes vinculantes do STF e STJ.
Nesse sentido, o Código de Processo Civil no artigo 927, inciso III, determina que os recursos extraordinário e especial repetivos, no âmbito judicial, são precedentes vinculantes. O artigo 926 do mesmo diploma prevê que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, prestigiando o princípio da segurança jurídica.
A lei que regula o processo administrativo federal no artigo 50, inciso VII, estabelece que a administração pública deve observar a jurisprudência nacional, prescrevendo que os atos administrativos que “deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão [...]”, deverão indicar os fundamentos da não aplicação.
O princípio da segurança jurídica é mais um fundamento para que precedentes vinculantes sejam aplicados pelos órgãos judicantes do Conselho de Recursos da Previdência Social. A propósito, a segurança jurídica foi um dos fundamentos para a Conselheira Raquel Lúcia de Freitas, do Conselho Pleno do CRPS, aplicar entendimento firmado pelo STF na ADI 1232/DF:
O último ponto que gostaria de registrar e que também foi mencionado no Projeto de Lei do Senado n. 374/2018 é a intensa atividade judicial no sentido de reconhecer a possibilidade de outros critérios definirem a miserabilidade. O Conselho de Recursos como órgão colegiado instituído de poder jurisdicional tem o dever de evitar a judicialização dos direitos sociais dando efetividade ao acesso à justiça e evitando o pagamento dos custos processuais, juros e correção monetária dos benefícios negados administrativamente Não se pode negar a grande responsabilidade que tem o Conselho de Recursos na interpretação das normas e pacificação social decorrente da rapidez e amplitude de suas decisões, principalmente na efetiva resposta àqueles que não possuem acesso ao Poder Judiciário. Assim, conheço do pedido de uniformização de Jurisprudência, e no mérito nego-lhe provimento para possibilitar ao julgador a utilização de outros critérios para definição da miserabilidade do grupo familiar, incluído o Parecer Social. .
No caso, o Conselho Pleno, por maioria, negou provimento ao Pedido de Uniformização de Jurisprudência formulado pelo INSS, de acordo com o Voto da Relatora e sua fundamentação. Assentou o órgão máximo do âmbito administrativo que, para aferição da vulnerabilidade familiar, é possível a utilização de outros critérios, nos termos do que foi decidido pelo STF na ADI 1232/DF.
Contudo, apesar da compreensão do Conselho Pleno ser louvável, é preciso fazer dois esclarecimentos: o órgão julgou favoravelmente ao segurado com fundamento no entendimento firmado em Ação Direta de Inconstitucionalidade; e a compreensão que todos os órgãos do Conselho de Recursos devem “[...] evitar a judicialização dos direitos sociais dando efetividade ao acesso à justiça [...]”, não é uníssona
Na realidade, grande parte das Juntas de Recurso e Câmaras de Julgamento julgam preterindo entendimentos qualificados do STF e STJ. Firmam seus entendimentos com fundamento no princípio da legalidade, fundamentando suas decisões em Decretos, Instruções Normativas, Portarias e Memorandos, repletos de ilegalidades já reconhecidas no âmbito judicial. É um contrassenso. A Justiça reconhece que o Ato Normativo é ilegal e os órgãos julgadores no âmbito administrativo julgam de acordo com Ato, com base no princípio da legalidade.
Outros argumentos para que os órgãos do Conselho de Recursos Previdência Social observem precedentes qualificados do STF e STJ são citados, novamente, em julgamento de Pedido de Declaração de Nulidade do Enunciado 35/2013 do CRPS, julgado em 27/11/2014, pelo Conselho Pleno daquele órgão. Em seu voto a então Relatora, Ana Paula Fernandes, enfatiza a função institucional do Conselho de Recursos, cita que o INSS é o maior litigante nacional na Justiça e arremata o raciocínio expondo o seguinte:
Como vimos o número de judicializações é exorbitante, questões que poderiam ser simplesmente resolvidas na via administrativa acabam sendo levadas ao contencioso judicial, trazendo dispêndio para todos: aos segurados pela demora na obtenção da resposta e consequentemente na consecução de seus direitos; ao governo pelos gastos desnecessários com custas judiciais e honorários advocatícios; e ao judiciário porque não possui mais estrutura para resolver as questões previdenciárias. Por fim, ainda, não menos importante, o Governo arca com duas estruturas funcionais: INSS e Poder Judiciário para resolver uma mesma questão, quando poderia tão somente ter uma via administrativa competente e capaz, que resolvesse as contendas e cumprisse seu dever originário, gerir a previdência social. E logicamente cabe ao Conselho de Recursos da Previdência Social zelar para que isso aconteça. Que a Previdência Social seja gerida da forma prevista no ordenamento jurídico vigente .
O prejuízo é de todos. Entendimentos firmados pelo STF e STJ no julgamento de Recursos Repetitivos são vinculantes para juízes e Tribunais, nos termos do artigo 927, inciso III, do CPC, porque não o são para os órgãos do Conselho de Recursos da Previdência Social?
Questões que poderiam ser resolvidas na via administrativa são levadas para o Poder Judiciário. Como consequência prática o Estado terá gastos desnecessários com custas judiciais e honorários advocatícios, além do tempo maior de espera que o segurado deverá aguardar para fruir da prestação previdenciária, de caráter alimentar.
Há, inclusive, alguns precedentes qualificados que são observados nos processos administrativos. A título de exemplo citamos o entendimento do STF firmado no ARE 554.335, com repercussão geral reconhecida, internalizado pelo INSS no Manual de Aposentadoria Especial (aprovado pela Resolução nº 600 /PRES/INSS) da seguinte forma:
No entanto, o Supremo Tribunal Federal – STF, em sede de Recurso Extraordinário com Agravo – ARE 664.335, com repercussão geral reconhecida, considerou que nos casos de exposição do segurado ao agente nocivo ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do PPP, da eficácia do EPI, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria. A decisão passou a ter obrigatoriedade a contar de 12 de fevereiro de 2015, data da publicação na Ata de Julgamento no Diário da Justiça.
Antes de seguir o entendimento sobre a eficácia do EPI no PPP, a autarquia indeferiu inúmeros pedidos de segurados, prática que inevitavelmente resultou em uma maior judiciliação das causas previdenciárias.
Na mesma linha o Conselho de Recursos da Previdência Social, por meio do Despacho nº 37/2019, revisou e atualizou alguns Enunciados do Conselho Pleno, passando seguir alguns – não todos – precedentes qualificados. Os Enunciados revistos foram aprovados após deliberação colegiada nas Sessões dos dias 29/08, 24/09 e 25/10.
Na deliberação, seguindo entendimento do STJ – firmado em sede recursos repetitivos – foi aprovado o Enunciado 3, que trata sobre a comprovação do tempo de contribuição, mediante ação trabalhista transitada em julgado. Na fundamentação é informado que o Enunciado está arrimado no seguinte: “Inteligência do § 3º, do artigo 55, da Lei nº 8.213/91, bem como em vasta e robusta jurisprudência do STJ a partir do julgamento do tema 297 e da publicação da Súmula 149”.
No inciso VI do Enunciado 8 o Conselho reproduz – em outras palavras – a súmula 577 do STJ que, a luz do artigo 927 do CPC, também tem força de precedente vinculante a Juízes e Tribunais. O Enunciado permite que os órgãos julgadores do CRPS reconheçam tempo de trabalho rural do segurado especial, mesmo que anterior ao início de prova material juntado no processo administrativo. A citada súmula assim enuncia: É possível reconhecer o tempo de serviço rural anterior ao documento mais antigo apresentado desde que amparado em convincente prova testemunhal colhida sob contraditório.
Além disso, os demais incisos do Enunciado refletem a jurisprudência da Turma Nacional de Uniformização, bem como na fundamentação são citadas as súmulas 10, 24, 30 e 41 da TNU e a súmula 577 do STJ. O Enunciado 8 reflete que é possível a observância de precedentes qualificados do STF e do STJ, além entendimentos firmados por outros orgãos do Poder Judiciário como a TNU. O citado entendimento foi internalizado pelo INSS no artigo 54, §2º, da Instrução Normativa 77/15, no seguinte teor: “§ 2º Serão considerados os documentos referidos neste artigo, ainda que anteriores ao período a ser comprovado, em conformidade com o Parecer CJ/MPS nº 3.136, de 23 de setembro de 2003”.
Por seu turno, o Enunciado 12 reflete literalmente entendimento firmado pelo STF no julgamento do ARE 664.335, com repercussão geral reconhecida, sobre a eficácia do equipamento de proteção individual (EPI) em relação a exposição a agentes nocivos.
Desta forma, a observância de todos os precedentes qualificados do STF e STJ, pelo INSS e também pelo Conselho de Recursos da Previdência Social – são órgãos distintos –, é plausível. Destacamos o entendimento firmado pelo STF sobre a eficácia do EPI em relação ao agente nocivo ruído, que já foi internalizado pelo próprio INSS
Destacamos, também, os Enunciados acima citados que refletem entendimentos do STF e STJ, e que são vinculantes para os órgãos julgadores do CRPS, mas não para o INSS. Destacamos, por fim, os argumentos econômicos e sociais favoráveis a desjudicialização da Previdência Social, e os aspectos práticos positivos que a medida proporciona para os segurados e para os Cofres Públicos.
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